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Auto - Retrato

  1. 1 - Vaticínio: Vida Longa

    Começarei pelo ser que já era antes de nascer. Foi em Lisboa, quando naquela madrugada de 31 de agosto de 1911 cheguei à vida, menos de um ano depois de proclamada a República e dez meses após o casamento dos meus pais. Trazia comigo, colada à nuca, uma pequena tripa a que a parteira chamou envide. Vai ter vida longa, vai ser feliz e inteligente, vaticinou a aparadeira, a mim, que era franzina! E o médico, quatro ou cinco anos depois, deu a meus pais a má notícia de que não passaria além dos seis anos; para me mandarem a ares de seis em seis meses.

    E aí, começo a andar em bolandas, de casa dos pais (i10) para casa dos Padrinhos, isto é, do Porto ou de Lisboa para a Beira, ou seja, Celorico da Beira ou Viseu. O meu Pai era funcionário de Finanças e sempre que tinha oportunidade, levava-me com a minha mãe, ao contacto com a família. Partiu daí o meu exercício de autonomia: na estação de embarque era confiada ao revisor do comboio; e à chegada, era entregue aos familiares. Pensar que este exercício não tinha influência no meu temperamento de independente, é puro engano, até porque a diversidade de ambientes despertava-me condições para situações futuras, uma delas quanto à minha educação religiosa.

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  2. 2 - Jornalismo veio ao meu encontro

    A profissão de jornalista, que veio ao meu encontro, foi para mim um campo de conhecimento e de aprendizagem da vida, muito para além do meu instinto ; de descoberta: aprender para comunicar. Com autonomia e empenho, totalmente disponível, fiz do jornalismo um bastião, não para me servir dele mas para servir os outros. De mãos limpas, pois nunca recebi dinheiro que não fosse de direitos de autora ou do meu ramo profissional do jornalismo. E fui o resto porque quis, no geral, ser uma mulher como profissional, na redação de um jornal, o República, de Lisboa, onde iniciei a carreira (i10) (i1), começando por onde muitos nem sempre conseguiam acabar: Os cortes da Censura aos meus dois primeiros artigos - Eutanásia e Crise da Sociedade das Nações - parecem documentar o caminho agitado que iria percorrer profissionalmente. Uma vez que a linha inicial da minha carreira me foi vedada pela censura, pelo menos resisti pelo lado da minha opinião, vindo a dedicar- -me especialmente aos campos da solidariedade e da cultura.

    Não é um caso banal o que me levou ao jornalismo. Esta jovem de então era professora no Grande Colégio Português em Viseu. Era uma topa a tudo, quer dizer, sem ter curso, ministrava as primeiras letras; assegurava as aulas de Francês e Português se as professoras faltavam; ensinava as meninas a dizerem versos; organizava as festas do fim do ano; e ainda lhe sobrava tempo para ler e fazer versos, especialmente sonetos, que divulgava pela região.

  3. 3 - Adeus noivado

    Não cheguei a casar-me, apesar de chegar a estar noiva em Mangualde. O noivo perguntou-me, a certa altura, qual era o caminho que eu pretendia seguir: o das Letras ou o de mãe e esposa? Com determinação, optei pelas Letras.

    Mas, para lá da poesia, o jornal atraía-me. O meu Pai era correspondente de O Século em Mangualde; e fundou o semanário Notícias da Beira. O noticiário atraía-me e os problemas da vida e da vila, igualmente. Estava então no Grande Colégio Português quando publiquei o livro de versos Claridade (i8). Dentro do sugestivo volume, meti o artigo em que defendia a Eutanásia e enviei-os para o jornal República (i9). Não conhecia lá quem quer que fosse. O artigo foi composto; e qual não é o meu espanto, quando em Viseu recebo o texto cortado pela censura; e um convite: Poderia continuar, na opinião de Ribeiro de Carvalho, o Diretor do jornal.

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  4. 4 - Aquilino prefacia Claridade

    O meu livro Claridade, publicado em 1935, foi prefaciado por Aquilino Ribeiro (i7) que nele incluiu uma reação ao crítico João Gaspar Simões... Era também altura de terem sido exiladas em Portugal, pela política do Brasil, as mais altas figuras culturais, como Paulo Barroso e Olegário Mariano. Esta aproximação facilitou muito a minha ação cultural no Brasil, onde fui como enviada especial do República (i13); (i19).

    Organizei um número consagrado à Colónia Portuguesa e à Cultura Brasileira, nele incluindo abordagens sociais como a reportagem sobre a Penitenciária de S Paulo (i20).

    Fui chefe de Redação da Vida Mundial Ilustrada por 1938. Passei ao Diário de Lisboa em 1945 (i2) - quando a Segunda Grande Guerra se aproximava do fim -, onde estive treze anos. Foi aí que comecei a inovadora edição em série de algumas das maiores reportagens no país, como o Itinerário Romântico de Portugal – obra literária e de investigação. E, a partir de 1960, fiquei no Diário de Notícias até à aposentação (i11); (i17); (i18); (i5). Entrevistei Gulbenkian, Hemingway, Humberto de Itália...

    Exerci a minha carreira de jornalista não para me servir mas para servir quem precisasse da minha voz. O meu gosto seria abordar, no jornalismo, problemas de economia social e do interesse e defesa daqueles que mais precisassem. Como a censura era muito apertada, pus de parte esta intencionalidade e dediquei-me especialmente a temas culturais - Teatro e Artes Plásticas. Trabalhava 16 horas por dia em jornalismo e como escritora, em ficção, ensaio, poesia e dramaturgia. Escrevi e foram representadas, as obras Má Sorte e Camilo e Fanny. Esta era uma comédia dramática em 3 atos e 5 quadros que subiu à cena no Teatro da Trindade em 1957 (i15) : Prémio SNI pela interpretação de Igrejas Caeiro e Maria Lalande (i16) .

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  5. 6 - Causas e gestos de apreço

    Pelos meus 101 anos, a C M Constância promoveu-me ali uma sessão de homenagem, com descerramento de placa comemorativa, com ampla divulgação na Imprensa e na Internet, o que me foi muito grato.

    Pela dedicação a esta causa, interrompi a minha carreira literária, que só reatei aos 90 anos, ao deixar de ir continuamente a Constância, escrevendo os livros Memória de uma Mulher de Letras (2009) (i2) (i12) , Memórias do Sr. Jeremias, o gato das botas brancas (2012) (i4) , homenagem ao gato que ocupava o lugar atual da Licinha (i22) , e Sinfonia Completa (2013) (i3)/galeria_manuela-azevedo/autoretrato/?showpageitem=2 . Agora, está pronto a ser editado o livro de Contos O Pão que o Diabo amassou.

    O jornalismo levou-me ao encontro de muitas situações de carência social. Para promover a solidariedade, percorri muitos bairros de lata, conseguindo o realojamento dos habitantes das furnas de Monsanto. Num Natal, levei uma menina do Casal Ventoso a um restaurante e ao cinema e dei-lhe uma boneca; quis que soubesse que havia outro mundo além do bairro de lata e disse-lhe: Agora tens de lutar para viver num mundo melhor também... Outro exemplo em que me recordo de ter intervindo, foi com Rosário, uma trabalhadora da Marinha Grande, que ficou com a cara queimada: consegui-lhe a assistência hospitalar que, por sucessivos enxertos, a recuperou.

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“Fiz do jornalismo um bastião para servir os outros”

Testemunhos

  1. Gratidão de Constância

    Desde 1952, quando veio pela primeira vez a Constância, Manuela de Azevedo construiu uma paixão imensa por Camões que transformou no motivo central da sua vida.

    Júlia Amorim Presidente da Câmara Municipal de Constância

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  2. Placa no TEC

    D. Manuela,

    Quando se entra no Teatro Municipal Mirita Casimiro, há uma série de placas que representam pessoas que são muito importantes para esta companhia. Assim, Miep Gies, Maria Barroso, Eunice Muñoz, Carmen Dolores e, de uma forma muito especial, Manuela de Azevedo.

    Carlos Avilez Ator/Encenador, Fundador/Diretor do TEC e Escola de Teatro

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  3. Marco em Mangualde e no País

    Tive, em Junho de 2010, o enorme prazer e honra de conhecer pessoalmente a admirável Manuela D’Azevedo aquando da cerimónia de apresentação da sua obra literária Memórias de uma mulher de letras, realizada na Câmara Municipal de Mangualde.

    João Azevedo Presidente da Câmara Municipal de Mangualde

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  4. Um obrigado a uma jornalista centenária

    Manuela Azevedo foi a primeira jornalista mulher em Portugal. Nenhuma mulher jornalista pode olhar para ela e não pensar o que se alterou – e não alterou – desde que ela começou. E é na própria vida de Manuela que vemos como o mundo mudou pouco. Ela teve de desistir de casar – estava noiva – quando decidiu ser jornalista.

    Catarina Carvalho Diretora Notícias Magazine

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  5. Uma força viva da natureza

    Falar de Manuela de Azevedo é falar de uma força da natureza. Empenhada, dinâmica, criativa, fez da vida uma conquista de coisas boas para si própria e para dar aos outros. O jornalismo foi o seu grande ideal.

    Disse um dia: Devo tudo ao jornalismo. É um exercício mental muito grande, põe-nos em contacto com a vida, dá-nos perspectivas mais sólidas da verdade; e hoje, que estou fora do jornalismo, sinto um grande desgosto por não estar lá.

    Zília Osório de Castro Diretora Faces de Eva. U. Nova de Lisboa-FCSH

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  6. ...Uma belíssima cepa!

    Alguém um dia disse: A vida nunca envelhece. A idade não é a fuga dos anos, é sim a aurora da sabedoria... É essa Sabedoria, adquirida ao longo da vida dedicada às letras, ao jornalismo e também em defesa de nobres causas, a matéria rica e viva que me faz falar de Manuela de Azevedo, apesar da nossa diferença de idades e de percursos de vida.

    Ana Lage Prima de Manuela de Azevedo

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  7. Hino: hoje e amanhã

    Acordei a meio da noite e escrevi mais um conto. Foi assim que, há poucas semanas, ela me surpreendeu ao telefone. Como de outras vezes, a cabeça fervilha e a criatividade ilumina-se. Um farol em tempos de escuridão.

    Luís Humberto Marcos Diretor do Museu Nacional da Imprensa

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