Semana dos namorados - Concurso de Textos de Amor - 2004

Premiados

2006

2005

2004

2003

 

1º Prémio

“Cantar do atormentado” 

Francisco Manuel Calado Gomes Abrunhosa

Braga

Menção Honrosa

“Anúncio”

Alguém A. Chuva (pseud.)

Madalena Homem-Cardoso

Lisboa

2º Prémio

“Cegueira” 

Iolanda Margarida Pereira Freitas

Matosinhos

Menção Honrosa

“As vozes em ti”

Daniel Costa-Lourenço

Hugo Daniel de Oliveira

Lisboa

3º Prémio

S/ título

José Lima

Valongo

Menção Honrosa

“Duas vezes amada”

  Paulo Alexandre Vilarinho de Barros

Vila Nova de Famalicão

 
   

  1º Prémio:

   

Cantar do atormentado

    

Não te mandei a carta em papel perfumado, com letras vertidas a tinta de caneta e caligrafia cuidada, escorreita, inclinada para a direita, em linhas paralelas, transpirando segurança; ou, pelo contrário: trapalhona, com rasuras denunciadoras de hesitação e nervosismo ansioso, mesmo que a um olhar pouco perspicaz. E não soprei a folha manuscrita, como de costume, após a afagar com os nós dos dedos, para lhe afastar hipotéticas impurezas, nem a dobrei cuidadosamente no formato do invólucro. Também não lambi o selo, nem tampouco a fímbria do envelope: perdi assim o gozo da sensação adocicada da cola, mas ganhei no risco, não corrido, de ofender a língua no gume afiado do papel. Não preenchi remetente, nem endereço, e menos ainda o código infindo, cada vez mais longo de algarismos que nunca ninguém sabe. Finalmente, não desci à rua em busca daquele, gordo e hirto, tubo de ferro fundido, que dantes era só vermelho vivo, de chapéu preto, de inerme boca aberta, com relógio ao peito, de um ponteiro só, que indica a hora que há-se ser quando alguém virá aliviar-lhe as entranhas, e que agora é secundado por um clone azul-bebé que, dizem, é mais rápido, para nele introduzir o subscrito, confiando que chegaria ao teu destino mais dia, menos dia.

Ganhei coragem e mandei-a, sim, mas na segurança asséptica, insípida e inodora, de zeros e uns, estúpidos e frios; sins e nãos, codificados pelo pisar das teclas de um caixote mágico que, onde luz, me pinta letras generosas, e me permite num piscar de olhos: recuar, saltar, mover, rasurar, sem nunca borrar ou rasgar, sem nunca se cansar ou protestar, sem nunca me denunciar.

Assim, sem sombra de mácula, abençoada por um corrector que acautela a gralha, com letra à la carte, bastou-me premir nos olhos de um bicho, roedor sem pêlo, de longa cauda, e ela lá foi, veloz, através de cabos, excitados por correntes mínimas, tão úteis quanto indiferentes ao que levam, até ao teu e-mail; termo exótico, mas, convenhamos, bem mais simples que: tua caixa de correio electrónico.

No entanto, ao tentar relê-la, com a atenção de distraído e o cenho de céptico, noto que, por mais voltas que lhe dê, não lhe falta nada: a força e determinação da palavra estão lá! Está lá tudo, incólume; pese embora lida a partir de uma imagem, escarrapachada em vidro - assim, como quem lê televisão - mantém o seu integral poder demolidor ou apaziguador, desperta os mesmos sentimentos e paixões, lágrimas e sorrisos, que as palavras manuscritas.

Bem, tudo isto, apenas para dizer que te mandei aquele mail e ainda não me respondeste.

 

Francisco Manuel Calado Gomes Abrunhosa

Braga

   

2º Prémio:

 

Cegueira

 

Em cada cruzar de olhos

procuro os teus

Em cada fim de tarde

relembro o teu desejo...

Ai, quisesse tu assim, amor

tanto os olhos meus

para os cegares aos dois

apenas com um beijo.

 

 

Iolanda Margarida Pereira Freitas

Matosinhos

    

3º Prémio:

     
Nos quadros de uma exposição imaginária

Encontrei primeiro o nascimento,

O aparecimento:

Eminente, elegante, voando sobre uma concha

(por força do sopro divino.

Aqui e ali Giorgione nas porfias iniciais,

Mas mais que tudo,

No meio de uma confusão organizada de Bruegel,

De uma vida desgarrada e às vezes frívola,

Encontrei os relógios perdidos e deitados,

Harmonizados na conversa primeira, mote para o sonho ulterior.

Foi então

Que eu me perdi deleitosamente nas danças

Do teu rosto

E do teu sorriso,

Nos contos de fadas

Que o nosso Pássaro de Fogo

Ajudou a construir no corredor dos nervos.

Julguei-me perdido entre os guerreiros

De Katschéi,

Batendo-me pelo pleito perdido.

Interrompi a ronda da princesa

E abri-me,

Contigo,

A uma berceuse,

No repouso ambrosíaco dos teus braços.

Começamos hoje.

Bem-vinda ao resto do nosso caminho.

 

José Lima

valongo

 

   

Menção honrosa

 

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Computador solitário, desligado do ciberespaço e sem apetência por intimidades esporádicas por CD-Roms de origem duvidosa, carente de estimulação e uso, com casa própria e ampla sala privativa, cuidada higiene antiestática diária, teclado ergunómico bastante silencioso, munitor extremamente sensível ao toque e uma sólida cultura geral nu disco rígido, mas fazendo correr pugramas já um pouco desactualizados, e tendendo para enumerações obsessivamente exaustivas, procura computadora multimédia cumpatível, de agradável estrutura tridimensional e muito boa apresentação, de preferência dispondo da melhor currecção ortugráfica e sem viroses significativas, para cunvívio em linha, futura amizade íntima com funcionamento em rede, e até pussível cumprumisso, incluindo eventual ligação comum a pequenos periféricos e portáteis que venham a surgir… Resposta virtual ao nº 206, com fotografia de corpo inteiro nu encuadramento doméstico (nada de recortes de catálogos comerciais). Garante-se sigilo por encriptação. Assunto muito sério.

 

 

Alguém A. Chuva (pseud.)

Madalena Homem-Cardoso

Lisboa

   

Menção honrosa

 

As vozes em ti

 

Procuram as vozes em surdina, na lentidão da luz,

em madeira rara, esquecidas e quentes, descarnada,

amaciando, arrepiando o veludo azul,

incandescente, de intensidade crepuscular,

inteiramente inventado na monção de verão,

percorrendo e envolvendo as mãos, nas tuas, longe,

querendo, temendo, ansiando, antecipando,

rasgando a madrugada e fios de prata caídos sem glória, sem brilho,

volteando, toureando demónios ao amanhecer,

perseguidos, eles e nós, sem nada em comum,

os mesmos medos, debaixo da almofada, quente e suada,

gritando mais alto que a fita, com gravilha na imagem,

invejando as letras e a escrita, a preto, em papel brilhante,

melhor que o teu, rascunho de peça, de dança rangendo no soalho,

de tinta escorrendo, alagando, mortificando-se,

temendo o afogamento em ti, imprevisível, inevitável, insaciável,

um insolente urro em plenos pulmões,

sou eu, mostrando-te o que sei, sobejando, explodindo,

a fascinação, a excitação digna de exibição, carnal, erótica, diferente,

cumplicidades de ser tão urbano, embriagado pela criação,

movimentos e contemplação, viver como aparições,

a busca silenciosa nas sombras do mar, onde o sol não tem lugar,

os fugazes desenhos, os amores tristes e enebriados,

a mentira do sonho que acaba, mesmo ali, na rua de baixo,

tão perto como o mal que nos vigia, que nos atormenta, rodeia,

estremecendo num marulhar distante do fim do mundo,

temendo o fim da polifonia, devoradora, insaciável,

o esquecimento, a cegueira, a mudez da voz que há em ti.

 

 

Daniel Costa-Lourenço

Hugo Daniel de Oliveira

Lisboa

Menção honrosa

 

Duas vezes amada